destripando sons

vinis e cds. maneiras minhas de olhar.

10.28.2005


Roger Keith Barrett, Syd Barrett, enfim, the madcap. A loucura e a genialilidade abraçadas de modo extremo – e isso não é uma visão romântica da loucura, mas apenas um fato. No início, encontrei os sons e as poesias de Syd por volta de 1980-81, através do primeiro e, pra muitos, único álbum do pink floyd(the Piper at the Gates of dawn, 1967) Nessa época, nada de internet, mp3, slsk etc. . Em Belém, informações sobre rock eram escassas, principalmente pra um moleque de 13 -14 anos. Era preciso conhecer os malucos certos, buscar as revistas certas(importadas, quase todas). Era preciso garimpar. Uma arqueologia alucinada e excitante, celebrada por longas viagens sonoras e posteriormente etílicas e coisas afins, se é que me entendem. Mas, era Syd e suas impressões marcadas em mim.
O álbum a ser comentado, importado, assim que chegou às minhas mãos passou a ser objeto de desejo dos poucos amigos que tinha. É um álbum duplo, reunindo, na íntegra, os dois discos lançados de fato por Syd.
A emoção de comprar, ouvir e ter pela primeira vez um, ou melhor, os dois discos do Barrett ainda hoje é eterna. Acho que isso foi em 1984 ou 85.
Logo de cara, o primeiro disco,“the madcap laughs ” trazia “Terrapin”... “I really love you and I mean you the star above you, crystal blue Well, oh baby, my hairs on end about you” . Canção arrastada, anasalada, violão e guitarra, barrett e gilmour. Os acordes são repetitivos, envolventes, nos sugam pra si, pras entranhas da atmosfera de amor contido num quarto vazio... “is dark below the boulders hiding all the sunlight's good for us”.
Já tragado pela força do disco, as vertigens aceleraram. Ainda parecia provável poder desistir, fazer de conta que Syd era apenas louco. Assim que o ruído da primeira passagem entre as músicas acabou, o tempo pra desistir esgotara-se em si mesmo. E veio o aviso...” It's no good trying to place your hand where I can't see because I understand that you're different from me. Yes I can tell that you can't be what you pretend”. Já não havia volta. Impossível ser o mesmo.
Mais? Um pianinho canalha, meio honky tonky ou coisa que o valha destilando uma canção de amor-louco. Love You.
Faixa 4 do lado um, No man’s land vem com seus solos e grunhidos e murmúrios, pura psicodelia de fato. E Syd ao violão, provavelmente noutro espaço só a ele pertencente, somente ele e um violão, entonações nada usuais(desafinadas?). Um lamento. Um eco. Um grito não ouvido... “my head kissed the ground I was half the way down, treading the sand please, please, please lift the hand”. Na faixa 6, novamente, amor. Uma canção quase adolescente, meio beatles – mas da forma e com a essência própria de quem conhece o outro lado da lua. fim do primeiro lado. Ainda há forças e sanidade pra trocar a face do disco. A loucura é nutritiva.
Octopus, uma batida forte. Guitarra, violão, baixo e bateria. Uma letra desconexa em sua sensatez. Palavras minuciosamente escolhidas, mesmo surgidas de lampejos – o paradoxo por si mesmo. Inigualável. O que expressar ao escutar a pura poesia nos dizer “The madcap laughed at the man on the border hey ho, huff the Talbot”?
Poesia. Sim. James Joyce lido por Syd, 62 anos depois. Golden Hair, de Joyce - 1907. Por Syd, 1969. Golden Hair. Golden Hair. Assim conheci James Joyce.
A loucura, sim. A loucura. Long Gone. E depois, She took a long cold look. Amor. Solidão. Perda. Procuras sem rumo. Confusão. Desespero por um fio. A sanidade enfim descoberta – um fio elétrico descascado no meio da chuva. Quantas tardes chuvosas tocaram Syd?
Feel, a faixa 6 do lado dois, novamente um violão e acordes que vêm e vão, dedilhados, tortuosos... “You feel me away far too empty, oh so alone! I want to go home…”
A loucura. A sanidade enfim desnuda. If it’s in you. Eu já havia escutado esta música antes mesmo de ter o disco. Lembro que fui apresentado a ela com ressalvas do tipo...”porra, o cara desafina direto, já estava pirado.”
If it’s in you. Uma entrada for a do tempo. Um tom além-aquém da conta... “Yes I'm thinking of this, yes I am puddle town, Tom was the underground hold you tighter so close, yes you are please hold on to the steel rail”
E alguém me vem falar de desafinação? “Did I wink of this, I am yum, yummy, yum, don't, yummy, yum, yom, yom...”
Late night encerra o disco. Ecos do pink floyd de Syd. A voz de Syd é dor em estado bruto; tipo de dor que faz do amor algo a ser vivido além dos limites. Pouco importa a perda. Pouco importa o vazio disso tudo... “When I woke up today and you weren't there to play then I wanted to be with you
when you showed me your eyes whispered love at the skies then I wanted to stay with you inside me I feel alone and unreal and the way you kiss will always be a very special thing to me...”
Esta é uma das letras onde mais sinto a forte presença do gosto de infância misturado com a sensação de que tudo será breve demais. Algo como a eternidade fixada num ponto pelo qual nós já passamos e que continua na nossa frente, tão perto, mais tão perto que nos é improvável tocar. Syd tocou. De alguma forma, tocou.
Barrett, o segundo disco. Alguns dizem ser fruto da degeneração mais explicitada. Apontam até que o álbum só existe de fato pela intervenção/produção de gilmour.
Os acordes introdutórios e a letra da faixa 1, “Baby Lemonade”, manda qualquer análise com cheiro de razão simplesmente às favas. “In the sad town cold iron hands clap the party of clowns outside rain falls in gray far away”
Love song, a faixa 2. Amor. Amar aquela garota. Novamente um ar de beatles e psicodelia juntos. Só que pelo olhar de Syd. E isso faz a diferença. Sempre que escuto essa música sinto de alguma forma a presença dum fim de tarde londrino, ensolarado e frio. Aquela garota, amar. E dançar. Leves. Desenhando a cada passo um céu cheio de surpresas. Amar aquela garota.
Dominoes. Depois da leveza, vem dominoes. “It's an idea, someday in my tears, my dreams don't you want to see her proof?” O peso marca presença. A felicidade é insustentável. Os sonhos desmoronam. Os pesadelos tomam forma. O amor debatendo-se. As paredes do quarto não podem conter. O pesadelo. A confusão. Os sentidos embaralhados. Dominoes.
As faixas 4, 5 e 6, it is obvious, rats e maisie são imagens atiradas sobre nós numa seqüência que nos rouba o ar. É como se tudo fosse dito ao mesmo tempo. Rats joga com a sonoridade. That’s love, repetido inúmeras vezes...rats-that’s. Palavras soltas, descoladas umas das outras e ao mesmo tempo, mosaico.
Lado 2. Syd ri de si mesmo. Twink na bateria – outro louco! Essa coisa de amar parece ter cansado. Gigolo aunt. “Yes I know what you are
you are a gigolo aunt, you're a gigolo aunt!”
O disco segue, nas faixas 2 , 3 e 4, na cadência do amor que se esvai, na procura da garota, aquela garota. Acordes e palavras, numa direção. Qual? Importa?
Wolfpack, a faixa 5 mergulha na insanidade – guitarras, distorções, steel...
E o disco encerra com a fabulosa Effervescing elephant. Aqui, infância e delírio. Algo que Syd faz como ninguém. Ele dá vida a quadrinhos, através da música-poesia. constrói imagens arrebatadoras. Há algo circense também. Uma tuba ao fundo. Um violão. He ate the ElephantA capa do disco Barrett foi feita por ele mesmo. Insetos desenhados. Enfileirados. Organizados. Métrica exata de traços milimetricamente concebidos na desordem. Sensatez? Syd Barrett. Laughs.

10.27.2005

Mostrar as tripas dos sons que me incitam, o que vale dizer, mostrar as minhas também.